domingo, 13 de setembro de 2009

Pergunta:

Aborto faz bem ou mal para a saúde mental?


Artigo publicado no Correio Braziliense, na retranca Opinião
Marcelo Medeiros
Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
Abortar faz bem ou mal para a saúde mental? A pergunta vem sendo levantada na discussão sobre aborto como um problema de saúde pública e é usada como munição no debate. Se faz bem, evitando o dano psicológico de uma gravidez indesejada, ponto a favor da descriminalização do aborto; se faz mal, causando traumas graves, ponto para os que acham que o aborto deva ser crime.Pesquisas foram feitas tentando responder a essa pergunta, mas suas conclusões não apontam na mesma direção. O tema do aborto provoca convicções religiosas e políticas e, no calor das discussões, o rigor científico costuma ser deixado de lado. Durante muito tempo, as análises sobre o assunto, lamentavelmente, foram de qualidade questionável, com cientistas distorcendo estatísticas e enviesando conclusões. Ruim para o debate sobre aborto, mas pior ainda para a ciência.Esse quadro começou a mudar nos últimos anos e, recentemente, foi publicado em uma das principais revistas de psiquiatria do mundo, o British Journal of Psychiatry, um estudo que está entre os mais rigorosos realizados até o momento, apresentando os resultados da pesquisa de David Ferguson, John Horwood e Joseph Boden na Nova Zelândia, que acompanhou, ao longo de trinta anos, a saúde mental de 284 mulheres que ficaram grávidas. Do total de gestações dessas mulheres, 22% resultaram em aborto induzido. O estudo é tão importante que foi mencionado em um artigo do Correio Braziliense escrito por Lenise Garcia, professora de biologia da UnB e presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida, entidade vinculada a um setor da Igreja Católica que defende a criminalização do aborto.Em sua interpretação pessoal, Lenise Garcia usa a parte do estudo que interessa à causa pró-criminalização para defender que o aborto traz grandes males psíquicos para a mulher que aborta. Não é a conclusão dos próprios autores do estudo, que afirmam, categoricamente, que seus resultados nem apoiam nem contestam posições extremadas em relação ao aborto. Uma conclusão que, por sinal, é alcançada também por outros estudos de última geração que colocam o rigor da pesquisa acima das convicções e dogmas pessoais dos pesquisadores.Interpretações enviesadas podem levar a várias direções, algumas até mesmo irônicas. Para ilustrar isso vale à pena destacar algumas das estatísticas do estudo. Por exemplo, aquelas que apontam que abortar pode ser bom, pois as mulheres que abortam têm menos risco de depressão do que as que levam uma gravidez indesejada adiante, ou ainda que a perda acidental da gravidez leva a mais riscos de intenções suicidas que o aborto induzido. Sem, é claro, deixar de mencionar que desejar ter filhos pode ser ruim, pois mulheres que desejaram ter filhos estão mais sujeitas à dependência de álcool e drogas do que as que não queriam ficar grávidas. Com um pouco de imaginação é possível usar as margens de erro apresentadas no estudo para concluir que há uma probabilidade razoável de que o aborto faça bem para a saúde mental das mulheres, assim como ir para o extremo oposto e concluir que há uma probabilidade semelhante de que abortar faça mal, tudo isso baseado nas tabelas publicadas e sem violar um único preceito da boa análise estatística.Não se viola a boa estatística, mas agride-se a boa ciência. Correlação estatística e causalidade são coisas distintas e, assim como não se pode apressadamente concluir que desejar ter filhos causa mais alcoolismo, imputar causalidade entre aborto e saúde mental é algo que deve ser objeto de extrema cautela. Ainda mais cuidado deve ser tomado para extrapolar para o Brasil resultados de um estudo sobre menos de 300 mulheres que vivem do outro lado do mundo e em um país onde o aborto é feito com autorização legal em hospitais seguros.A solução para o problema está em tratar os resultados desse e outros estudos com muita sobriedade. Existirão poucos casos em que abortar será positivo para a saúde mental das mulheres, assim como haverão casos igualmente poucos em que o aborto causará trauma psicológico, em meio a muitos em que abortar não será uma questão relevante, e qualquer generalização apaixonada deve ser tratada com muita desconfiança. O que não é aceitável é o uso distorcido da autoridade científica para influenciar políticas públicas de acordo com interesses de grupos religiosos.

Fonte: Correio Braziliense
Autor: Equipe Anis

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