sexta-feira, 22 de maio de 2009

Em pauta:Vergonha


"A que ponto chegamos!


A palavra “vergonha” é uma destas palavras ambíguas e é de uma peculiar forma de ambigüidade. Tem ao menos dois sentidos, sendo que um designa um sentimento moral positivo, mas outro negativo - tudo dependendo do contexto sentencial em que ocorrem.


Consideremos (1) “Ele sentiu uma grande vergonha de ter feito o que fez”. Supondo que o indivíduo em questão realmente tenha se sentido envergonhado por uma ação praticada, a vergonha aqui é um sentimento moral positivo, pois é um efeito produzido pelo reconhecimento de culpa acompanhado de arrependimento.


Suponhamos agora (2) “Ele não sentiu a menor vergonha diante de tudo aquilo que fez”. Era esperado que o indivíduo que praticou uma ação vergonhosa sentisse vergonha pelo que fez. Mas a não-produção do referido efeito é uma indicação de que ele não se sentiu culpado e, por não ter se sentido assim, não experimentou nenhum arrependimento.


Segue-se, portanto, que o sentimento de culpa leva à vergonha e esta ao arrependimento.
Temos de fazer uma distinção entre culpa e o sentimento de culpa. Aquela tem um caráter objetivo, mas este tem um caráter subjetivo. Tanto no sentido ético como no jurídico, uma alegação de culpa pode e tem que ser provada, mas o sentimento de culpa simplesmente não pode ser provado, embora possa ser inferido por um sinal: o rubor da face indicando vergonha.
E é justamente por isso que um indivíduo pode ser culpado e sentir vergonha, mas pode não sentir e ser culpado e pode ainda não ser culpado e sentir.


Na peça de Sófocles Édipo-Rei, a personagem principal Édipo mata Laio, seu pai, mas não sabendo que o indivíduo morto em um duelo era seu pai; casa com Jocasta, sua mãe, sem saber que aquela linda mulher era sua mãe.


Devemos considerá-lo autor de um parricídio e de um incesto? Não há dúvida que ele praticou um homicídio, mas este teve lugar num duelo, cabendo, portanto, a alegação de legítima defesa. Além disso, na Grécia antiga os duelos não eram punidos por lei, eram considerados uma questão de honra.


Não há dúvida de que ele casou com sua mãe, mas não teve a intenção de cometer um incesto ao desposar a rainha de Tebas. Talvez fosse cabível a alegação de um incesto culposo, mas jamais doloso. Mas sendo culposo ou não, Édipo se sentiu culpado pelo ato incestuoso, bem como pelo homicídio de Laio. E em conseqüência disto, furou seus olhos e passou a vagar pelo mundo como um mendigo.


É conhecido o caso daquele indivíduo que, padecendo de um grave transtorno mental, vai a uma delegacia de polícia e confessa ter cometido um homicídio que não cometeu. Ele não é objetivamente culpado, mas isto não o impede de se sentir culpado e sentir vergonha pelo ato que alega ter praticado.


Por outro lado, sabemos que um psicopata, mesmo tendo cometido diversos crimes hediondos, nunca se sente culpado e jamais se sente envergonhado. Considera-se que ele é definitivamente incapaz de ter sentimentos morais.


Contudo, seria açodado considerá-lo um indivíduo imoral: ele não é um indivíduo moral nem imoral, porém amoral. Nem tampouco está além do bem e do mal, tal como o Zaratustra de Nietzsche: Ele está aquém do bem e do mal, tal como uma criança de colo. Porém, diferentemente dela, ele é um caso de internação e tratamento psiquiátrico.


De tudo isso que dissemos, podemos concluir que a capacidade de sentir vergonha é uma das mais importantes feições do homem como ser moral, seja quando ele reconhece seus erros e se arrepende dos mesmos, seja quando olha à sua volta a se reconhece como um homem moral vivendo em uma sociedade imoral, de acordo com o título do livro de Reinhold Niebuhr: Moral Man and Immoral Society (Nova Iorque. Scribner’s. 1932).

Entre nós, talvez ninguém tenha expressado melhor a referida condição do que Rui Barbosa nos inícios do século XX:

Sinto Vergonha de Mim
Tenho vergonha de mim,
Pois faço parte de um povo que não reconheço
Enveredando por caminhos que não quero percorrer.
Ao lado da vergonha de mim,
Tenho pena de ti,
Povo deste mundo!
De tanto ver triunfar as nulidades,
De tanto ver prosperar a desonra,
De tanto ver crescer a injustiça,
De tanto ver agigantarem-se os poderes
Nas mãos dos maus,
O homem chega a desanimar da virtude,
A rir-se da honra,
A ter vergonha de ser honesto.

A que ponto chegamos! Os desonestos não sentem vergonha nenhuma; os honestos sentem, mas sentem vergonha de serem honestos! "
*
Por :Mário Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ.

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