quarta-feira, 17 de junho de 2009

A justiça virou o melhor hospital

"Se você não aguenta mais ouvir falar em gripe suína e no câncer da ministra Dilma, clicou no lugar certo. Hoje não vou comentar nenhum dos dois importantes assuntos que dominaram o noticiário de saúde nos últimos dias. Vou falar sobre um terceiro tema – extremamente relevante – que pouco apareceu na imprensa: a discussão no Supremo Tribunal Federal sobre a judicialização da saúde.
A palavra é um pedregulho, mas não desista de ler esse texto. Ele tem tudo a ver com a defesa da sua saúde – da nossa saúde. Quando uma pessoa adoece e precisa de medicamentos modernos não oferecidos pelo SUS, ela entra na Justiça contra a Secretaria Estadual de Saúde. Apoia-se no artigo da Constituição segundo o qual saúde é direito de todos e dever do Estado. Os juízes não têm conhecimento técnico sobre a utilidade desses remédios. Não conseguem avaliar se uma droga cara vai de fato salvar o paciente. Na maioria dos casos, dão ganho de causa ao doente. É por isso que muitos pacientes dizem que o judiciário virou o melhor hospital do Brasil. Nos últimos anos, milhares de ações desse tipo transformaram os juízes em “autorizadores” de tratamentos médicos. Esse fenômeno cria enormes distorções. O tratamento de um único paciente pode custar milhares de reais. O orçamento da secretaria de saúde é finito. Quando o juiz obriga o governo a gastar um dinheirão com um único paciente, o gestor deixa de cumprir outros programas para atender à ordem da Justiça. Na prática, a tentativa de salvar um paciente de câncer terminal pode comprometer a distribuição de remédios baratos contra a hipertensão que poderiam salvar centenas de outras pessoas. Qual interesse deve ser respeitado: o da coletividade ou o do indivíduo? Não há resposta fácil.

O Supremo Tribunal Federal realizou audiências públicas sobre o tema. Ouviu representantes do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais, médicos e associações de pacientes. Outros três dias de discussão estão programados para esta semana. Segundo o STF, os dados ficarão arquivados e poderão ser usados pelos ministros durante a elaboração de votos em processos que cheguem à Suprema Corte. As associações que representam os pacientes estão em pânico. Acham que o resultado dessas audiências será a edição de uma súmula vinculante. Ou seja: o STF pode chegar a um entendimento sobre o assunto que adquiriria força de lei. Se concluir que a justiça deve negar os pedidos dos pacientes, todos os outros tribunais e juízes teriam de seguir a mesma conduta. Eu, você e qualquer cidadão que precisar de um remédio não oferecido pelo SUS terá de se conformar com a falta de assistência? Há inúmeros exemplos de drogas eficazes que salvam vidas, estão aprovadas há muito tempo no Brasil, mas não são oferecidas gratuitamente. Para ficar num exemplo da semana: a ministra Dilma Rousseff será tratada com quimioterapia convencional e mais uma droga moderna chamada MabThera (rituximabe). Cada dose custa cerca de R$ 10 mil. A chance de cura de quem usa essa droga aumenta 20%, em casos de linfoma como o dela. Na maioria dos estados, porém, o paciente do SUS só consegue o remédio se entrar na Justiça. E agora? Corre o risco de não poder contar com esse recurso? “A população brasileira não pode ser responsabilizada pelas falhas dos gestores do SUS. O poder judiciário é imprescindível para garantir o direito à saúde nos muitos casos de omissão governamental”, afirma o Fórum das ONG/Aids do Estado de São Paulo numa carta aberta enviada ao STF. “Medicamentos podem demorar anos para fazer parte das portarias e protocolos clínicos do SUS”, afirma Carlos Varaldo, diretor do Grupo Otimismo de Apoio ao Portador de Hepatite. “Quem pode pagar dispõe de tratamentos efetivos. Os pacientes do SUS passam a ser considerados cidadãos de segunda categoria”, diz Varaldo.
É possível respeitar o direito individual dos pacientes sem quebrar os cofres da saúde? Fiz essa pergunta ao professor Marcos Bosi Ferraz, diretor do Centro Paulista de Economia da Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ferraz costuma dizer que nosso sistema de saúde vive um grande desafio: satisfazer tentações de 2009 (o acesso às drogas mais modernas) com recursos de 1980 e problemas de saúde de 1960.
Nos últimos anos, o Brasil tem investido em saúde cerca de 8% do seu PIB (somados todos os investimentos e gastos do sistema público e do sistema privado). Isso é insuficiente para garantir o acesso de toda a população a todos os recursos médicos. “É preciso assumir o ônus político de dizer publicamente que não dá para fazer tudo para todos”, diz Ferraz. “Infelizmente, a árvore do dinheiro não existe”. O Brasil precisa definir prioridades: quais as doenças mais graves, mais frequentes, que provocam mais sofrimento ou que podem ser evitadas com prevenção. Em seguida, deve buscar evidências sólidas de que o investimento em diagnóstico e terapia realmente compensa. Ou seja: o dinheiro investido realmente salvará vidas. “Num ambiente de escassez de dinheiro como temos hoje, não adianta investir em ações de saúde incompletas, como diagnosticar a doença e não oferecer tratamento”, afirma Ferraz. É maravilhoso viver num país que tem uma Constituição que garante a todos – sem distinção – o direito à saúde.
Na prática, sabemos que isso não acontece. Em outros países, a assistência é menos abrangente. Alguns exemplos:
* No Canadá, as províncias oferecem apenas um pacote básico de serviços a toda a população;
* Nos Estados Unidos, o serviço público é restrito aos muito pobres, a parte dos idosos e aos veteranos de guerra;
* No Chile, o sistema público é opcional. Só quem o utiliza tem de contribuir para o fundo nacional de saúde.
Mais cedo ou mais tarde, o Brasil terá de discutir a essência de seu sistema de saúde. “Quando uma demanda chega ao judiciário, é a constatação mais clara de que já falhamos no processo de decisão”, diz Ferraz. “A decisão de fornecer ou não um remédio deveria ser médica e estar orientada por prioridades claras e transparentes”, diz Ferraz. Não sei qual é a forma mais justa de resolver o impasse atual – que é resultado de distorções crônicas. Desconfio que os gestores de saúde e os ministros do STF também não sabem."


Por:Cristiane Segatto


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